08 de Março e a Vó Mais Linda

Quero falar da Dona Josa, minha Vó, a Vó Josa. Não falarei apenas como neto, das minhas vivências, das palavras ditas e das minhas interpretações sobre o não dito, falarei também como ser social que vive diferentes espaços em sociedade. O que eu quero com esse texto? Não tenho a mínima ideia, mas ele está em meu coração desde antes do meu Vô Valdemar deixar esse plano. O que sei é que quero escrever para minha família e partilhar com vocês como vejo essa Mulher, com M maiúsculo mesmo.

Nunca conhecemos uma história completa, nem mesmo a nossa história sabemos na íntegra, somos muitas pessoas ao mesmo tempo, somos aspectos conhecidos e desconhecidos da nossa história. Imagina saber a história de nossas mães, pais, avôs e avós… Aí que não sabemos mesmo!

Em várias oportunidades eu quis gravar minha Vó e meu Vô contando nossas histórias, até propus contratar alguém e assumir o compromisso de não olharmos enquanto estiverem em vida, mas não toparam. São muitos os motivos para não conhecermos nossa história. A carga da vida pesa, são alegrias, tristezas, acertos, erros, culpas, vergonhas, orgulhos, silêncios, palavras ditas, desculpas e palavras engasgadas. Viver é maravilhoso, mesmo sabendo que por vezes sentimos dor e fazemos doer.

Minha Vó é uma mulher do seu tempo, que é também o hoje. Por mais que ela não seja da militância orgânica, é uma ativista da vida, disposta a enfrentar e transformar a realidade, individual e coletiva. Como Lia de Itamaracá, Dona Josa escrevia na areia, pois ler e escrever não era “coisa de mulher”, mas ela foi lá e fez. Esse será o 91º 8 de março dessa Mulher linda e guerreira.

Em outros momentos da vida também foi ela quem teve que ir lá e fazer. Nas dificuldades das secas do sertão do Ceará, lá em Mombaça, quando imperava a fome e a dificuldade de alimentar tantas bocas, ela não esperou da roça e do trabalho do meu Vô, abriu a janela e começou a vender cocada e outras delícias que até hoje só ela sabe fazer. Mas não ficou aí, foram muitas as investidas empreendedoras que a levaram para as compras em Fortaleza, Recife e São Paulo.

Dona de uma das risadas mais gostosas, a Vó também adora contar e ouvir piadas, de todos os tipos e sem medo de julgamentos. Também gosta de sentir novos sabores e conhecer novos lugares. Vejo Dona Josa como uma mulher que foi além do que muitas pessoas imaginavam, mas menos do que ela poderia, minha Vó é muito grande, talvez por esse motivo suas filhas também sejam – eu vejo assim.

Não, não estou pintando um céu de brigadeiro ou com aquela estória que todo sofrimento vale para crescermos na caminhada, estou apenas começando pela força e alegria de quem viveu e criou 14 filhos e filhas, mas esse caminho não foi justo. Josa, Josina o nome dela, foi criada por terceiros e, nos arranjos familiares da época, casada com meu Vô Valdemar, que na época talvez não fosse o amor da sua vida, mas foi com ele que viveu por mais de 70 anos e teve muitos momentos de amor, presenciei vários desses. Na madrugada era comum eu acordar com medo e correr para deitar entre eles, onde sempre recebi cuidado e amor dos dois.

Minha Vó não queria ter tido tantos/as filhos/as, e isso não é um problema, o problema foi não ter tido esse direito garantido. Sim… e nem venham com a baboseira mentirosa que “poderia ter evitado”, a história do patriarcado diz o oposto, dita o controle dos corpos das mulheres, mas não ajuda na carga da maternidade. Também não venham com essa de que em “coração de mãe sempre cabe mais um”, por mais que exista amor, também existe a dor. Feche os olhos e imagine mais de 10 crianças dentro de casa, adolescentes partindo para São Paulo, briga para apartar, o marido no mundo (na roça ou outros lugares permitidos pelo patriarcado), a comida por fazer, ou inventar quando não tinha, as roupas para lavar, os bichos para alimentar, a casa para varrer…

Como neto, nunca vivi os duros momentos vividos por minha mãe e meus tios e tias, vivi e vivo apenas o lado positivo de ser neto, mimos, cheiros, histórias, estórias e muitos aprendizados. Lembro como hoje das vezes que fui vender máscaras de carnaval e dindim na frente da escola atendendo ao pedido da Vó, eu sempre gostei de ajudar. Não tenho motivo para culpar ou sentir culpa na relação entre neto e Vó, mas ela já veio pedir desculpas por questões que não dizem respeito diretamente a mim, mas a minha mãe e a história que temos conjunta.

Muitas decisão duras dentro de casa foram aplicadas pela Dona Josa, algumas ela até poderia concordar, mas outras não, ela “apenas” transmitia por ser dela a responsabilidade com “as coisas da casa”. No ritmo frenético de uma casa cheia como aquela, algumas decisões precisavam ser tomadas sem consulta ao “homem da casa”, algumas dessas não eram compartilhadas, mas desfeitas ou reclamadas.

Não sei se isso acontece com minhas primas e primos, mas comigo é comum acolher histórias dos mais velhos e das mais velhas, mesmo que sejam histórias pontuais, algumas delas dói. Por vezes eu apenas escuto, entendo que existem questões que não cabe ao filho, ao sobrinho, ao neto, cabe aos mais velhos sentirem até onde estão dispostos para cavar, mexer e tampar novamente, mas agora com nova terra e adubos de qualidade. Também é verdade que as vezes pesa mais o assistente social que sou, e saem alguns encaminhamentos.

Imaginem, e aqui não estou refletindo uma ou outra história em minha família, mas imaginando com vocês as histórias existentes em muitas famílias: as condições que fizeram um/a ou outro/a sair de casa; a fome; a falta de escolha do lugar de dormir; um relacionamento que foi proibido; os conselhos que não foram escutados; o brinquedo que não ganhou; as histórias passadas na cara; as acolhidas para ajudar, que por vezes exploravam; um débito que não foi pago e outra pessoa achou que pagou; um abuso vivido e acobertado; os anos sem notícias; uma palavra dita; as consequências de um silêncio; uma surra. Sei lá, tantas coisas passamos em nossas vidas e cada um/a sente de uma forma tão específica, um mesmo fato pode doer de forma tão diferente em cada um de nós.

Em nossas histórias existem muitas arestas, muitas delas Raul Seixas sintetiza em uma frase: “É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro, evita o aparto de mão de um possível aliado”. Muitas das nossas questões podem ser resolvidas com diálogo, conhecimento da própria história e compreensão do momento histórico e das condições objetivas que cada um temos ao nosso alcance. É sim, mas outras resolveriam apenas com uma boa terapia, algo que muitas pessoas não estão tão dispostas assim.

Você que chegou até aqui viveu coisas que só você (ou alguém bem pontual) sabe. Em 91 anos de vida Dona Josa também viveu coisas que só ela sabe. Muitas vezes esteve só, mesmo arrodeada de tanta gente. Foram lágrimas reprimidas ou liberadas entre quatro paredes. Sorrisos discretos ou escondidos. Desejos realizados e reprimidos. Fico imaginando quantas histórias não passam na cabeça de minha Vó ao olhar para o lado e não encontrar seu companheiro de uma vida inteira, de alegrias e arengas, de concordância e divergência, de imposição, desconstrução e construção, pois sei que ela mudou meu Vô e foi mudada por ele, nunca foi uma mulher de apenas baixar a cabeça.

Ouvi por muito tempo minha Vó dizer que queria morar em Recife, mas não ia justificando que precisava “ficar com meu velho”. Hoje Seu Valdemar não está fisicamente entre nós, mas a Vó Josa diz que não quer deixar a casa dela abandonada. Muitas filhas e filhos já são idosos/as e sem condições físicas e emocionais de cuidar da mãe, outras/os filhas/os (e netos/as) não podem deixar os empregos (filhos/as e netos/as) em outros estados e ir para Mombaça. Não, minha Vó não está só, ainda tem filhos morando por lá, outras/os no revezamento e alguns que passam para visitar, mas é pura verdade que a casa está cada vez mais vazia.

É difícil, talvez impossível, dizer dos sentimentos das outras pessoas, cada qual sabe onde o calo aperta, onde culpa e onde se sente culpada, em que acha que deve mexer e o que deve deixar quieto, mas não estou para dizer o que fazer, apenas para dizer que: amo minha família, inclusive a parte que não é de sangue, os presentes da vida; amo e admiro minha Vó, respeito as decisões dela, espero que ela esteja certa nas escolhas e que estas sejam respeitadas; respeito os caminhos da minha mãe, tias e tios, vão até onde podem e podem sempre mais um pouco; netos e netas são secundarizados/as em muitas decisões e ações, mas sei que eu, minha irmã, meu irmão e minhas primas e primos, estamos a disposição, só não vamos atropelar os mais velhos e as mais velhas, mas estamos aqui.

Deixe um comentário