Carta ao Centenário do Vô Valdemar

Entre lágrimas e sorrisos escrevo as primeiras linhas que remetem ao ano do primeiro centenário da Independência do Brasil, 1922. Linhas que remetem ao período da Semana de Arte Moderna, mas, apesar de ser um 17 de fevereiro de 1922, não vamos para São Paulo, não vamos para apresentação de Villa Lobos nessa importante Semana. Vamos para o Sítio Paciência, município de Maria Pereira, no Ceará, onde nascia o poeta Valdemar Holanda Freitas, nosso pai, avô, esposo, bisavô, tio, irmão.

Só 16 anos depois o Serafin Dias entra nessa história. Vô, imagino que aqui o senhor nem imaginaria como esse cantinho seria maravilhoso para seus neto, as pescarias, os banhos de rio, as frutas colhidas no pé, as cavalgadas, o barulhinho gostoso da queda d´água que, com o friozinho da neblina que cobria o rio, fazia seus netos molharem a rede.

Em 1948, com a cidade já oficialmente chamada de Mombaça, como todos e todas conhecemos, a jovem e linda Josina casa com Valdemar, uma união que ultrapassaria os anos das bodas diamante. Dessa união foram 15 filhos e filhas, iniciando a fila em 1949 e encerrando no início dos anos 1960, vou nem contar os netos, netas, bisnetos e bisnetas, seriam muitos números para poucas páginas.

Estamos falando de um século de vida. O neto mais velho, que tem grande importância em minha formação cultural, não viveu nem metade. Maitê, a bisneta mais nova, agora que viveu 1% dessa jornada. Sei que nessa caminhada foram muitos erros, mas como neto só posso falar dos acertos desse século de vida.

Seu Valdemar, sei que o senhor já viveu muitas secas, já viveu um Brasil de muita fome e já ajudou a superar a fome de muitos, seja na partilha do alimento ou na caderneta que nunca seria paga. Viu nosso Brasil sair do mapa da fome e agora acompanha nosso retorno a esse triste mapa.

Primos, primas, vocês sabem o motivo do Vô e Vó irem morar na cidade em 1963? A maioria dos filhos e filhas já estavam em idade escolar, assim eles estudariam e teriam os pais por perto. Mas saibam que antes disso, ainda no Serafin Dias, mantiveram uma professora morando em casa para educar os filhos, tinha uma sala para essa função.

Vô, imagino como foi difícil ter a casa cheia e acompanhar a partida de um filho após o outro, mas sei que a sabedoria do senhor compreende os caminhos da vida e como, cada um de nós, também somos responsáveis por nossa caminhada. Nossos caminhos também são seus, cada um de nós somos um pedacinho do Seu Valdemar espalhado pelo Brasil e pelo mundo.

Os quatorze filhos e filhas vivas trilharam caminhos diversos. Os homens começaram partindo para São Paulo, aquela cidade da Semana de Arte Moderna. As mulheres partiram para Pernambuco dos belos carnavais, as mulheres são sempre mais inteligentes (rsrsr). Muitos foram jovens, alguns crianças, entendo eu. Tenho orgulho da nossa história, por mais que eu saiba que nós, netos, netas, bisnetas e bisnetos, nunca saberemos de muita coisa vivida por nossos pais e mães. Alguns segredos seguirão sendo segredos, seja pela vergonha, seja para preservar a dor que poderia causar nas pessoas que amamos.

Hoje a casa está cheia, é dia de sorrisos e lágrimas de alegria. É dia de celebrar a vida, o senhor é parte de uma geração nascida após a pandemia da Gripe Espanhola. Hoje vivemos em meio a outras milhões de mortes pelo mundo, agora é a COVID19, motivo pelo qual alguns de nós não estamos nesse encontro lindo. Sobrervivemos e temos a alegria de viver essa dia, que possamos retribuir ao universo.

A tão falada Semana de Arte Moderna é parte de uma retribuição e transformação social pós pandemia. Temos alguns artista na família, não sei se pela referida Semana, mas tenho certeza que pelas cantorias na calçada, pelo forró de lamparina no Serafin Dias, pelas fogueiras e balões de papel, pelas poesias do Seu Valdemar, pela arte de interagir com a natureza e a vida.

Quero pedir licença para falar rapidamente do Tárcio, que também virou poeta. Lembro quando o senhor via de longe a chegada dos pau-de-arara – que levavam as mulheres e homens de fé – e gritava: “Tarcinho, leve as cocadas para vender e depois água”, eu corria alegre por ajudar. Lembro também quando voltei correndo e chorando porque um rapaz tinha furado com um canivete o isopor que a Vó colocava alguns dindins para eu vender na frente da escola, o Senhor descobriu quem foi e deu uma lição de moral daquelas, mas não foi violento com ele em um só instante. Essa criança da cocada e do dindim, já vendeu os pães da mãe, já vendeu cachorro quente, arrumou arquivo de banco, já trabalhou na madrugada.

Contei essas minhas histórias para dizer que senti semelhança com a vida de muitos e muitas da nossa família de homens e mulheres que não tem medo de pegar no pesado. Já fomos muitas coisas e somos parte desse todo, sejam as partes ruins ou as boas. Nosso Vô não foi apenas agricultor, entre muitas aspas o apenas. Ele já foi marchante, cortava e vendia carne em banca alugada com outras pessoas. Ainda solteiro, ele “botava banca” nas festas dos distritos para vender perfumaria, folhetins de moda, batons, pentes e enfeites para as moças, imagino quantos “tha, tha, thas” não dizia durante o dia.

Tios e tias, eu só soube algumas coisas da história da nossa família quando assumi a tarefa de escrever essa carta ou quando, tempos atrás, resolvi conhecer mais do baú da vida. Suas histórias ajudam para que nos conheçamos melhor, até mesmo para que possamos ajustar alguns pontos que não sabemos de onde vem. Contem suas histórias, se não tudo, conte um pouco, vão sentindo até onde podem ir. Primos, primas, perguntem sobre a vida dos seus pais e suas mães, eles às vezes não sabem, mas precisam falar e nós, em alguns momentos, precisamos ouvir.

Vó, sei, sabemos, que essa caminhada do Vô, assim como a relação dele com minha mãe, meus tios, tias, primos e primas, não seria a mesma sem a presença da senhora, não é, Vô? Somos gratos em ter vocês dois conosco.

Seu Valdemar, na última vez que eu estive em Mombaça, já quase 8h da manhã, quando o senhor chegou na cozinha vindo do quarto, naquele momento, eu percebi que em nenhum daqueles dias eu tinha sentido aquele cheiro de café que se espalhava pela casa após às 5h da manhã. Não sei se lembra, naquele dia perguntei se o senhor estava dormindo ou descansando? Sua resposta foi imediata: “descansando a força, a cabeça a mil e o corpo não acompanha”.

Naquele dia fiquei imaginando eu sentado e olhando apenas o Carnaval passar, sem ir atrás dos blocos, mas esse pensamento não foi com tristeza de outrora, foi com a alegria de viver e aprender com meu avô, os ritmos são outros, mas segue sendo a vida, segue sendo intensa e vivida. Já não são os tempos do vaqueiro na caatinga, do marchante, do vendedor de batom. Já não são os tempos do forró, das fogueiras, dos banhos de rio. Mas seguem sendo tempos de amor, de casa cheia, de ensinamentos e aprendizados.

Eu poderia desenvolver cada um dos pontos aqui descritos, cada um deles caberia em várias páginas, assim como poderia trazer outras dezenas de experiências que não estão nessas linhas. Cada um de vocês presentes nessa festa, seja em presença física ou em energia, escreveriam outras dezenas de páginas com momentos e histórias, mas Vô, penso que todos e todas terminariam essa carta da mesma forma, dizendo da nossa gratidão, do quanto é grande nosso amor por Seu Valdemar, o Marido, o Pai, o Avô, o Bisavô, o Irmão, o Tio, o Ser Humano.

Tárcio Teixeira

Neto do Seu Valdemar

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